4 meses. 120 dias. 2 900 horas.
Uma vida inteira.
Eram 14 horas quando cheguei à
pastelaria. O seu semblante teso e musculado foi o primeiro a aparecer ao meu
olhar. Trazia no rosto traços carregados de uma dureza que eu nunca lhe tinha
denotado. Gestos frios, insossos, crus. Da doçura que lhe era conhecida, nem
sinal. De sentimentos nem indício. O corpo movia-se por obrigação e era apenas
o suporte para a razão que carregava. Estúpida razão. Sentei-me na mesa do
canto, intentando que a minha transparência fosse significativa por me sentir
insignificante. Á sua volta, junto ao balcão, os clientes esboçavam sorrisos
rasgados e desesperavam por aquela contribuição dentífrica de sempre que não
apareceu. Nem troco nem esmola. Limitava-se a um “boa tarde”, seco e grosso,
que doía. Doía muito.
Empurrei com toda a minha vontade
aquele refluxo de desgosto e engoli as lágrimas que chegariam dentro de
segundos aos recantos do meu olhar, desesperados pelo que inesperado. Dois
goles no abatanado, um pastel de nata mordiscado, conta paga, fuga decidida.
Ao sair da pastelaria, uma mão agarra o meu pulso e sinto os dedos a apalparem-me os tendões, um de cada vez. As mãos quentes chocam termicamente com o meu corpo gelado de o ter tão perto.
Ao sair da pastelaria, uma mão agarra o meu pulso e sinto os dedos a apalparem-me os tendões, um de cada vez. As mãos quentes chocam termicamente com o meu corpo gelado de o ter tão perto.
- Sofia… Esqueceste-te do troco.
Esticou a mão e devolveu-me as
moedas num gesto de segundos que posso descrever durante horas. O meu pulso
continuava seguro por aquela mão firme enquanto a outra mão se entregava à
minha, que já se havia aberto, disposta a provar a maciez do meu doce. Nesse
momento deixou cair o troco e, largando-me o pulso, acompanhou o gesto
aconchegando-me o dorso da mão.
- Oh, obrigada…
Aquela foi a primeira vez que
estivemos tão próximo, a primeira vez que tive a certeza de que os baques no
meu coração podiam provocar-me um A.V.C. (“Amor Vaidoso e Colorido”, como
costumo dizer), num instante. A primeira vez que uma única certeza dissipou
milhentas dúvidas e desejei congelar o tempo.
Naqueles segundos, vi-o como
nunca e amei-o para sempre. Ali, tão próxima e tão distante, pude sentir a sua
respiração, forte, rápida mas incomodada, como se fosse explodir de raiva, num
misto de tristeza e dor, talvez…
Porquê? Porquê tamanho ódio no
seu olhar agora?
Não me lembro do caminho até
casa. Os meus pensamentos esgotavam-se nele, naquelas mãos, no seu olhar,
naquele corpo, encaixe perfeito para o corpo e para alma (meus, só meus!), com
certeza.
Abri a porta, sentei-me no sofá e
empanturrei-me de croissants. Se algum dia foi mito que as crises emocionais se
resolvem com doces, eu tornei-o realidade. Comer pastéis para esquecer quem os
faz. Irónico.
- Aproveita, Sofia. – A minha mãe
afigura-se à porta da sala rigorosamente preparada para o seu encontro de
amigas semanal. – Aproveita que amanhã já não te vai saber igual!
- Não digas disparates, mãe.
Estes croissants são óptimos. Não enjoo assim tão facilmente!
- Não é por isso querida. Então
ainda não sabes? O Lourenço, o pasteleiro, vai viver para fora do país a partir
de amanhã e parece que não volta mais!
Já lá vão 4 meses. 120 dias. 2 900 horas.
Para mim, uma vida inteira.