quinta-feira, 13 de março de 2014

Eles



4 meses.  120 dias. 2 900 horas.
Uma vida inteira.

Eram 14 horas quando cheguei à pastelaria. O seu semblante teso e musculado foi o primeiro a aparecer ao meu olhar. Trazia no rosto traços carregados de uma dureza que eu nunca lhe tinha denotado. Gestos frios, insossos, crus. Da doçura que lhe era conhecida, nem sinal. De sentimentos nem indício. O corpo movia-se por obrigação e era apenas o suporte para a razão que carregava. Estúpida razão. Sentei-me na mesa do canto, intentando que a minha transparência fosse significativa por me sentir insignificante. Á sua volta, junto ao balcão, os clientes esboçavam sorrisos rasgados e desesperavam por aquela contribuição dentífrica de sempre que não apareceu. Nem troco nem esmola. Limitava-se a um “boa tarde”, seco e grosso, que doía. Doía muito.
Empurrei com toda a minha vontade aquele refluxo de desgosto e engoli as lágrimas que chegariam dentro de segundos aos recantos do meu olhar, desesperados pelo que inesperado. Dois goles no abatanado, um pastel de nata mordiscado, conta paga, fuga decidida.
Ao sair da pastelaria, uma mão agarra o meu pulso e sinto os dedos a apalparem-me os tendões, um de cada vez. As mãos quentes chocam termicamente com o meu corpo gelado de o ter tão perto.

- Sofia… Esqueceste-te do troco.

Esticou a mão e devolveu-me as moedas num gesto de segundos que posso descrever durante horas. O meu pulso continuava seguro por aquela mão firme enquanto a outra mão se entregava à minha, que já se havia aberto, disposta a provar a maciez do meu doce. Nesse momento deixou cair o troco e, largando-me o pulso, acompanhou o gesto aconchegando-me o dorso da mão.

- Oh, obrigada…

Aquela foi a primeira vez que estivemos tão próximo, a primeira vez que tive a certeza de que os baques no meu coração podiam provocar-me um A.V.C. (“Amor Vaidoso e Colorido”, como costumo dizer), num instante. A primeira vez que uma única certeza dissipou milhentas dúvidas e desejei congelar o tempo.
Naqueles segundos, vi-o como nunca e amei-o para sempre. Ali, tão próxima e tão distante, pude sentir a sua respiração, forte, rápida mas incomodada, como se fosse explodir de raiva, num misto de tristeza e dor, talvez…

Porquê? Porquê tamanho ódio no seu olhar agora?

Não me lembro do caminho até casa. Os meus pensamentos esgotavam-se nele, naquelas mãos, no seu olhar, naquele corpo, encaixe perfeito para o corpo e para alma (meus, só meus!), com certeza.
Abri a porta, sentei-me no sofá e empanturrei-me de croissants. Se algum dia foi mito que as crises emocionais se resolvem com doces, eu tornei-o realidade. Comer pastéis para esquecer quem os faz. Irónico.

- Aproveita, Sofia. – A minha mãe afigura-se à porta da sala rigorosamente preparada para o seu encontro de amigas semanal. – Aproveita que amanhã já não te vai saber igual!

- Não digas disparates, mãe. Estes croissants são óptimos. Não enjoo assim tão facilmente!

- Não é por isso querida. Então ainda não sabes? O Lourenço, o pasteleiro, vai viver para fora do país a partir de amanhã e parece que não volta mais!


Já lá vão 4 meses.  120 dias. 2 900 horas.
Para mim, uma vida inteira.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Sempre em frente, nunca para trás

Não vou lamentar, o que passou, passou
Eu vou embora, meu tempo acabou
Tenho muita coisa para descobrir
Eu sinto muito, mas tenho que ir
Vou pro mundo porque nada mais me prende aqui
É o final do show
E não fique magoado porque vou partir
É só o jeito que eu sou
Changes lá vem meu trem
Vem meu trem
To saindo fora porque eu vou me dar bem
Changes lá vem meu trem
Vem meu trem
Sei que tá na hora e eu vou me dar bem
Sempre em frente, nunca pra trás
Não é por nada não mas vou me divertir
Enquanto a vida assim permitir
Só procurar fazer amigos do bem, se precisar ajudar também
E agora a liberdade é o horizonte
Só você não sacou
Nova York, Ipanema ou Hong Kong
É nessa aí que eu tô
Changes lá vem meu trem
Vem meu trem
Tô saindo fora porque eu sei que vou me dar bem
Changes lá vem meu trem
Vem meu trem
Sei que tá na hora e eu vou me dar bem
Sempre em frente, nunca pra trás
Livre eu me sinto, sublime
Gente mais gente
O mar e o céu azul
Changes lá vem meu trem
Vem meu trem
Tô saindo fora e eu sei que vou me dar bem
Changes lá vem meu trem
Vem meu trem
Tô saindo fora e eu sei que vou me dar bem
Sempre em frente, nunca pra trás
Sempre em frente, nunca pra trás

Tema de Seu Jorge - Changes, cover em Português da música com o mesmo nome, de David Bowie.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Ele

7h59m: Já estou atrasada! Tenho que me despachar se quero ser a primeira a entrar na padaria. Todos os dias, desde há meses, aglomero pão em casa, só para entrar ali. Ele não sabe, nem ninguém, que o que eu quero mesmo é começar o dia a olhar para aqueles olhos amêndoados, tímidos e de um brilho que me deixa nervosa só de pensar. Evito o olhar muito a custo, mostro indiferença, pago e saio dali a correr. Que vergonha! Não sei como me dá para fazer estas meninices, eu que fui sempre tão direta e extrovertida… Por mais parvo que possa parecer, o meu incentivo para acordar de manhãzinha é este: olha-lo por segundos, sentir as suas mãos suaves numa troca de moedas, as mais pequeninas, apreciar a sua pele quente, tremer, tremer, tremer e vir-me embora.
Sou tão estupidaaaa!

Eu até podia interessar-me por outra pessoa, podia. Não querendo parecer convencida, confesso-me bastante requisitada para saídas e chovem convites e pedidos de amizade todos os dias. Rapazes giros, meninos do papá, que me chamam princesa e me entregam flores diariamente. Os melhores discursos e os mais belos gestos. E eu nunca me interesso, nunca. As minhas amigas já desistiram. Não sabem o que se passa, que desde que vim de Londres que ando assim. Pudera.

Há seis meses atrás, acabada de chegar da Londínio Romana, pensava que já não me podia acontecer mais nada neste cantinho de Portugal, que eu já era uma menina do mundo: 4 anos fora da minha nação fizeram de mim conhecedora de muitos países, culturas, formas de vida e o meu poder de comunicação fez-me conhecer topo o tipo de Pessoas. Nunca pensaria eu que, depois de pousar as malas e ir de empurrão tomar café com a família para responder aos “ai, diz lá como foi”, “viste os reis?” e “não comeste bem, pois não filha? Eu sabia que tu não te ias dar sozinha!” pudesse chocar com ele. Eu a entrar, ele apressado de saída e 30 pães a voar padaria fora. Foi lindo. Aquele cheirinho a pão quente e doces, que eu adoro, uma confusão imensa e o meu tempo parado. Ali. Só eu e ele. O meu jeito desajeitado. A sua timidez, meia tonta, e tão sua. Eu. Ele. Ele e eu.
E O BATER DE GONGOS GIGANTES NO MEU CORAÇÃO!

- Estás bem?!
(Ai estou, estou, então não estou. Se sabia tinha desmaiado, que essas mãos de pasteleiro podiam bem fazer de mim o melhor croissant do mundo)

Levantei-me apressada, sacudindo do peito os restos de farinha e declarei aberta a minha sina, uma loucura desenfreada pelo menino da padaria que eu nunca tive a coragem de conhecer. Todos os dias, de manhã e depois do almoço, faço os possíveis e os impossíveis para estar ali, naquele estabelecimento que aos poucos se foi tornando a minha segunda casa. Sozinha ou acompanhada, sinto-me bem ali, mesmo sendo difícil vê-lo tanto como queria. Malditas películas de vidros, clientes e tudo e tudo e tudo!
Claro que eu não me fiquei por aqui: aos poucos, fui sabendo dele nas mais variadas vertentes, sem ele sequer alguma vez imaginar. Cá para mim, isso também pouco lhe importa: Evita-me de todas as maneiras, em todos os sentidos. “É tímido e muito calado, menina. Mas um doce de rapaz!”, ouço. 
O doce dos doces, é o que é.

Será que algum dia terei a oportunidade de poder ouvi-lo falar de todas as histórias maravilhosas que tem, que eu sei que tem, para me contar? Se calhar não sou o género rapariga que ele procura. Acho que é isso. Ninguém vai levar a sério uma tagarela, cheia de amigos com a mania das modas e das tecnologias! A dita “popstar” que não é levada a sério, mais uma vez. A menina rica, só porque o pai é bancário e mãe professora universitária, que toda a gente julga queque. Bah, quantas vezes já ouvi esta história, quantas vezes já chorei por ela! Por mais que tente, ninguém me leva a sério. Tão pouco os meus pais, “que a menina tem é que casar com alguém da sua classe, estudar e ter um ciclo de amigos fechado que hoje em dia a inveja é muita e as pessoas só nos fazem mal!”
Acabo de fazer um gesto obsceno.

Eu quero é alguém que me ame. Que me ame de verdade. Quero ser eu, viver no meu cantinho cheio de cães e gatos, que tanto adoro e que nunca pude ter, quero quero ter o meu conto de fadas real, protagonizado por pessoas reais, com problemas reais, que não sejam o “ai querido parti uma unha!” e “o Artur, comprou um carro novo. Mercedes. Que falta de gosto!”.

Quero alguém que me abrace e me faça sentir protegida, que cante comigo no chuveiro e me cubra quando estiver a dormir. O que eu quero mesmo, é Ele. Quero aquele coração de Ouro, aqueles braços fortes e o cheirinho dos docinhos quentes no nosso forno. Quero guerras de chantily e passeios pela beira mar, risos e choros, mãos dadas e palavras sinceras. Quero aqueles olhos de amêndoa doces e a ternura do seu sorriso.

Quero ser feliz.
E, pela primeira vez na minha vida, não sei como.
Se, pelo menos, ele se interessa-se por mim, se ele me visse, realmente…