terça-feira, 22 de novembro de 2011

O poder da mudança

Há 10 anos atrás, quando apareci pela primeira vez em casa do Sr. João para lhe pedir ajuda com a festa de anos surpresa da sua filha, que é minha amiga, ele presenteou-me com poucas palavras e um ar severo.
O seu semblante carregado de doutrina e ar sabedor, que impunha por trás do bigode farfalhudo e do fato bem passado, anteviam a minha incapacidade de falar abertamente e de finalizar os assuntos com um sorriso aberto, como costumo reagir sempre que converso.
Quando apareci em sua casa, apresentei-me do modo que sabia, sem grandes pompas, porque fui simplesmente eu. Uma menina de 14 anos, diante de um doutrinado em regras de bom comportamento e rigidez, não poderia estender-se muito!
Respondeu ao meu pedido com dezenas de perguntas, carregadas de preocupação.

- Uma festa surpresa para a minha filha? Mas como? E vão fazer isso onde? Só se for ao início da tarde, mas tenho que pensar bem, falar com a mãe dela, que ela não pode andar por aí assim! E quem vai? Como vão comprar as coisas? – arrancando de mim toda a capacidade explicativa e paciência, respondi a todas as suas questões. Às vezes os actos mais simples tornam-se complicados!

Desde que conheci o senhor João que nunca lhe visualizei um sorriso na cara. Homem de poucas falas e andar recto na vida e nos passeios que dava com a família, levou aquele meu pedido como um favor que me fazia.
A rectidão que seguia, passou para o lar. Das poucas vezes que me atrevi a abeirar-me á porta de sua casa, tudo estava ordeiramente calmo e no devido lugar: Os filhos no quarto, a esposa na cozinha, e ele de lado para lado a inteirar-se da linha directiva da habitação.
Com educação, simplicidade e esmero na escolha de gestos harmoniosos, falei-lhe sempre como achava que deveria. Nunca deixei de ser eu, apesar de saber que naquela casa, todos se tinham habituado a poucas conversas, seriedade e linearidade. E eu, que por minha vontade não me calava nem um segundo, só me apetecia tocar á campainha, bater-lhe nas costas em jeito de cumprimento enquanto ele me abria a porta e entrar por lá a dentro a cantar, atirar-me para o sofá e berrar para que a minha amiga se despachasse.

Apesar do meu esforço por ser o mais simples possível, sempre tive noção de que o Sr. João desejava outro género de companhia para a filha. Alguém que tivesse posses e fosse visto como gente de bem. Que tivesse um nível cultural elevado, uma boa casa e mais do que isso, que fosse o melhor aluno. A seguir á filha, claro. Mas eu era moçoila da terra.
Possuía alegria para brincar, era gente de bem com a vida, tinha imensas casas de lençóis na eira da minha avó, um nível cultural elevado em música popular e era boa aluna mas apenas quando podia, que as brincadeiras ocupavam-me boa parte do tempo.
Durante vários anos, muitas foram as situações que passei para conseguir que a minha amiga pudesse dar um passeio comigo. Engoli muitos sapos, fiz muitos gestos harmoniosos, portei-me como manda o protocolo, mas nunca vi um sorriso na cara do Sr. João, muito menos um gesto de carinho.

Passaram-se 10 anos.

Hoje, enquanto dormia o meu sono de costume no comboio, ouvi a informação de que tinha chegado ao meu destino. Espreguicei-me interiormente, arranjei o cabelo desgrenhado pelo cair da cabeça em uníssono com o percurso do transporte e levantei-me. À minha frente, várias caras conhecidas mas uma que não pertencia àquele ambiente.

Peguei nas minhas coisas, levantei-me e cumprimentei o Sr. João.

Questionado pelo facto de ser ou não quem ele estaria a pensar, o Sr. João já estava há algum tempo a olhar para mim, disse-me.
Cumprimentou-me, alimentado pela curiosidade do meu crescimento enquanto me observava as mudanças de tantos anos. Naquele gesto observador, pude reparar na leveza do seu olhar, na facilidade dos gestos, que já não estavam coadunados com a rigidez de outrora.
Acompanhei o senhor até ao exterior do comboio e notei-lhe um ar humano, de vencedor. Seria aquela uma mudança interior ou apenas um dia bem disposto, um momento mais descontraído, que eu nunca pudera observar?
Retomei o passo lado a lado com ele enquanto o Sr. João me perguntava por mim. Eu estava ali, a responder-lhe, mas apenas em metade. A outra parte de mim estava a lembrar-se dos gestos harmoniosos, da escolha das palavras. Mas antes que pudesse pô-los em prática retomei-me na totalidade com o que visualizei.

O senhor João estava a sorrir!

Falou-me da filha, dos projectos, quis saber de mim. Sinto que fiquei ali muito pouco tempo comparativamente ao que desejava. Fiquei tão perplexa que me mantive non sense e mais ainda quando lhe ouvi o coração:

- Eu sei que nunca fui um homem de falar muito. Nem nunca te disse o que queria porque não me permito a afectos. Mas queria dizer-te uma coisa... Não sei é como explicar! Não quero ser mal entendido... È que... Durante todos os anos que te conheço, via em ti uma menina com muito para dar. Aquela tua capacidade de falar, de te exprimires... Ainda me lembro, até parece que foi ontem, quando tu me pediste ajuda para a festa surpresa da minha filha. Achei um gesto muito bonito. Mas nem foi só o gesto, foi a maneira como falaste, a alegria que transmites! Permite-me dizer-te, Ana, tu tens tudo para seres uma grande mulher. Ainda és muito nova, tens muito pela frente... Mas se seguires o teu caminho e lutares pelo que queres, sei que vais ter muito sucesso... E sabes... Sempre gostei muito de ti.

O peso da mala, dos livros, da roupa invernal, dissiparam-se. A estação ficou vazia. Era só eu e o sorriso do senhor João. Como é que, em tantos anos, teve que ser agora? Mostrei um sorriso enorme, com certeza o maior e mais sincero que tenho, agradeci em grande escala e antes de me enfiar no barco rumo á tempestade de perguntas interiores, chegou a bom porto a resposta.

- Sabes Ana, no ano passado tive um cancro. Estive muito mal, ás portas da morte, mas não quis que ninguém soubesse. Fui só eu e a minha família. Sofri muito... Mas agora já estou bem. Tenho feito exames regulares e voltei a ir á terra. Voltei a encontrar os meus amigos de miúdo, a falar com os vizinhos e a sair de casa. Estou feliz.

Ah pois esta! Felicidade é sem dúvida o apelido do Sr. João! Enquanto o ouvia, imaginava o ar sério e rígido quando lhe falei pela primeira vez. Do deambulo preocupado pela casa, do semblante carregado. E digo-vos, o senhor João parece que rejuvenesceu, aquele sorriso muda completamente a sua postura!
Fiquei muito contente e agradecida pelas palavras do Sr. João. Fiquei muito feliz pela sua mudança, pelo seu aspecto e por ter conseguido superar as dificuldades.

Despedi-me com um longo sorriso e um abraço e vim embora a pensar:

Poderão algum dia as pessoas serem felizes
e aprenderem que só têm uma vida,
que merece ser vivida com toda a intensidade,
sem terem que passar por dificuldades?

Poderá existir um sorriso em todas as caras, em cada momento?

Um sorriso que aqueça, que cure, que ilumine?


Que sirvam estes exemplos para que as pessoas possam aperceber-se da alegria que é estar vivo,
do orgulho que é poder viver.

Bem-haja, Senhor João! E agora que aprendeu a sorrir, faça-o sempre. Fica-lhe bem! :)


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